Valor Econômico – O segmento de trens de passageiros, um dos modais mais negligenciados no Brasil nas últimas décadas, vive um ciclo de novos projetos. O governo de São Paulo, que no ano passado licitou o trem São Paulo-Campinas, prepara a Parceria Público-Privada (PPP) de uma rota ferroviária até Sorocaba.

No governo federal, há outros seis projetos em estudo, e grupos privados também buscam viabilizar empreendimentos. No entanto, as iniciativas ainda enfrentam desafios financeiros, operacionais e regulatórios para de fato sair do papel.

Na carteira do Ministério dos Transportes, o projeto mais avançado é o da rota Brasília-Luzitânia, um trecho de 60 km com previsão de R$ 1,7 bilhão de investimentos, além dos gastos operacionais estimados em R$ 3,7 bilhões. Os estudos estão sendo finalizados, e a ideia é fazer o leilão em 2026, segundo Leonardo Cezar Ribeiro, secretário nacional de Transporte Ferroviário.

Para tirar a concessão do papel, será preciso fechar um déficit de viabilidade de R$ 1,2 bilhão. Uma das alternativas em análise é incorporar receitas imobiliárias no cálculo. O uso de recursos públicos também é uma opção para fechar a conta, disse Ribeiro.

Para ele, um dos trunfos do projeto é que a malha não teria que ser construída do zero. O trecho hoje integra a concessão da Ferrovia Centro-Atlântica, da VLI, com foco em carga. O trecho entre as duas cidades é um dos devolvidos pela empresa ao governo, em meio a seu processo de renovação antecipada do contrato, que deverá ser fechado em 2026.

Além do trem Brasília-Luzitânia, o governo federal estuda outros cinco trajetos, também com trechos a serem devolvidos por concessionárias de carga. “A ideia é criar um banco de projetos, com uma preocupação sobre a viabilidade econômica. Por serem ferrovias existentes, têm condições econômicas mais vantajosas”, afirmou o secretário.

No governo de São Paulo, os trens intercidades em estudo têm sido viabilizados por recursos do Estado e pelo compartilhamento de riscos. No caso do Trem Intercidades (TIC) até Campinas, conquistado em 2024 por um consórcio da Comporte com a chinesa CRRC, a rota também foi licitada em bloco com a linha 7-Rubi de trens metropolitanos, já operacional, o que ajudou na atratividade do contrato.

Agora, o Estado prepara o leilão do TIC até Sorocaba, que deverá ser uma extensão da linha 8-Diamante, operada pela Motiva (ex-CCR). A ideia é fazer a licitação do empreendimento entre o fim deste ano e o início de 2026.

No mercado, há também projetos de ferrovias privadas, a serem construídas em regime de autorização, no qual não há participação do governo. O caso mais emblemático é o do trem de alta velocidade São Paulo-Rio de Janeiro, embora no setor haja descrença quanto à viabilidade do empreendimento bilionário.

O trem demandaria investimento estimado em R$ 50 bilhões, além de outros R$ 10 bilhões necessários em desapropriações e desenvolvimento imobiliário – um aspecto importante para sua viabilidade.

Bernardo Figueiredo, presidente da TAV Brasil, empresa responsável pelo projeto, afirma que o grupo está tirando a licença prévia junto aos órgãos ambientais, e que tem um acordo com um grupo chinês. Porém, há dificuldades de avançar pela falta de sinalização de apoio do governo ao projeto. “O que estamos buscando, que é difícil, é um investidor. Somos um grupo de profissionais que estrutura projetos, não somos investidores desse porte. A conversa com os chineses estava avançando, mas eles precisariam que o governo sinalizasse interesse”, disse.

Questionado sobre o empreendimento, Ribeiro afirmou que o governo vê com bons olhos a iniciativa, mas que como se trata de uma infraestrutura totalmente privada, há limites nesse apoio, e citou o financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como um dos canais de incentivo para ferrovias dessa natureza.

Recentemente, o governo do Rio Grande do Sul também deu autorização para outro projeto ferroviário privado, do trem entre Porto Alegre e Gramado, em estudo pela Sultrens. A estimativa de investimento gira entre R$ 4 bilhões e R$ 4,5 bilhões, segundo Renato Sucupira, presidente BF Capital, uma das três empresas que compõem a Sultrens.

O grupo também terá o desafio de atrair recursos. “Estamos conversando com possíveis investidores, sejam financeiros ou estratégicos, alguém que queira construir e operar”, afirmou.

Com projetos de diferentes perfis em curso, Ana Patrizia Lira, diretora-executiva da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), vê uma onda de expansão do segmento se formando.

“Vivemos um momento diferenciado, temos projetos em diversas fases, isso é importante para, em algum momento, haver um desenvolvimento. O setor precisa amadurecer mais, obter mais fontes de financiamento e investidores. Mas já há uma preocupação em segurança jurídica para que isso se concretize. Em São Paulo, o setor ferroviário foi incorporado à agência reguladora, no âmbito federal está em construção uma política com diretrizes de compartilhamento de via, garantias ao usuário”, afirmou.

Já analistas veem o movimento com mais ceticismo. Para David Goldberg, diretor-sênior da A&M Infra, os projetos do governo paulista têm desafios, mas estão mais maduros e trazem mecanismos que ajudam a atrair investidores – como o modelo de proteção contra o risco de demanda de passageiros e uma estrutura de garantias dos pagamentos públicos bem organizada.

As iniciativas federais, por sua vez, ainda geram dúvidas. Juan Landeira, também diretor-sênior da A&M Infra, afirma que transformar trilhos de carga em vias voltadas a passageiros não é simples, em especial nos trechos hoje voltados à movimentação de carga e que serão devolvidos, pois, em geral, são estruturas que estão em pior estado. “Quando se fala em trem de passageiros, há uma série de questões a serem consideradas em termos de conforto, velocidade e segurança”, disse.

Para Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, para além do TIC Campinas, os demais projetos da área ainda são embrionários e não há clareza sobre sua viabilidade. “Resta saber se haverá interessados. São empreendimentos de grande porte, e o dinheiro privado sozinho não vai sustentar.”

Goldberg, da A&M, destaca que até o governo paulista enfrenta dificuldades. “Não é fácil encontrar atores com capacidade de administrar esses riscos, que combinam tanto os desafios de operação da malha quanto os de investimento na infraestrutura. As empresas têm tido dificuldade para encontrar construtoras com liquidez”, afirmou.

O modelo de transporte de passageiros por trilhos começou a se enfraquecer no Brasil a partir dos anos 1950, na esteira de uma decisão política de impulsionar o modal rodoviário. Com a redução dos subsídios públicos, problemas na operação e a decisão de fazer a concessão dos trens para carga, nos anos 1990, o uso dos trilhos pela população praticamente se encerrou, segundo Quintella.

Hoje, os trechos que ainda transportam passageiros são operados pela Vale, na Estrada de Ferro Carajás, entre São Luís (MA) e Parauapebas (PA) e a Vitória-Minas. Porém, trata-se de serviços secundários na operação.

Para ele, a principal diferença do Brasil em relação a outros países que utilizam o modal é a carência de investimento público. “Os projetos ferroviários demandam muito investimento, e os custos de operação também são altos. A tarifa não vai remunerar o investimento, precisa de subsídio.” Por outro lado, Goldberg destaca que hoje o modelo de PPPs está mais maduro no país, o que ajuda a impulsionar esses empreendimentos.