Comentários de Fernando Abelha

A partir deste domingo, 25 de setembro, e pelos demais subsequentes, publicaremos em capítulos, mais denúncias documentadas com fotos, sobre o desmando que vêm sendo submetidos os trechos ferroviários concedidos à iniciativa privada pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva, com incontestável ação de lesa à pátria praticada, com total omissão dos órgãos fiscalizadores, contra o patrimônio da extinta Rede Ferroviária Federa S/A.

O jornalista André Tenuta, da ONGtrem, enviou documento ao Procurador da República no Estado de Minas Gerais, Fernando Martins, denunciando o descaso das autoridades para com os trens e ferrovias da extinta Rede Ferroviária Federal, em Minas Gerais.

Colaboração do jornalista e ferroviário Luiz Carlos Vaz, RS, que assim se pronunciou: – “Achei muito bom. Vale a pena a sua leitura. Fartamente ilustrado com fotos muito interessantes do sucateamento da frota brasileira e o aproveitamento da “velharia” em outros países”.

 Eis a íntegra do documento em sua primeira parte:

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Prezado Sr.

O sistema ferroviário nacional vem sendo reduzido a um mero DEPARTAMENTO de empresas exportadoras.

TUDO o que não interessa a estas empresas não tem valor ou futuro algum, não apenas na visão destas empresas, mas também na dos órgãos que, pretensamente, deveriam zelar pela sua integridade, e/ou trabalhar para a expansão e a universalização do acesso ao transporte ferroviário.

O DESMONTE do sistema ferroviário nacional, que se inicia na década de 1960, tem sido sistemático, impiedoso, desastroso, impatriótico, insano, maldoso e burro, e mesmo agora, no Século XXI, onde o valor, a conveniência e as vantagens do transporte ferroviário já foram demonstradas à exaustão mundo afora, o Brasil segue trilhando exatamente o oposto, tratando, não só de não investir na sua disseminação, mas de ARRASAR COM O QUE ESTÁ PRONTO.

Não cabe aqui repassar todo o histórico desta insanidade nacional, da qual, em tempos recentes, a Resolução 4.131 da ANTT foi estrela de primeira grandeza, mas, expor a última delas, oriunda agora do DNIT, órgão que, em princípio, deveria ser o guardador dos bens ferroviários não em uso pelas Concessionárias.

Mas, nem de longe é nisto no que ele se concentra. Muito ao contrário, a trajetória do DNIT tem sido apenas em duas linhas; se livrar do patrimônio do qual deveria cuidar, e trabalhar, não no atendimento do interesse nacional, mas no das empresas que o amealharam. Portanto, não é de se estranhar que este órgão tenha sido capaz de decretar, há pouco, que TODOS OS CARROS DE PASSAGEIROS, MÁQUINAS E VAGÕES EXISTENTES EM SOLO NACIONAL, E QUE NÃO ESTEJAM ATENDENDO AOS PATRÕES CONCESSIONÁRIOS DEVEM SER RETALHADOS E REDUZIDOS A PÓ!

Assim, em nome de um combate à dengue, virá o golpe final no que restou das reminiscências do sistema ferroviário nacional que um dia atendeu, de fato, à população brasileira. TUDO irá se acabar DEFINITIVAMENTE, para que não tenha mais nem mesmo a possibilidade de se soerguer.

E se um resumo tiver de ser feito do aconteceu sob o olhar complacente da dupla ANTT-DNIT, ele será o seguinte:

– Dos 28.000 km de linhas entregues às Concessionárias em 1996 cerca de 16.000 km se acabaram na mão delas, sob os olhares complacentes e cúmplices da ANTT e do DNIT. Todas as linhas que foram “devolvidas” pelas Concessionárias, ou já foram “devolvidas” aos frangalhos, ou se acabaram por abandono e impossibilidade de uso por outrem, ou foram diretamente “ofertadas” pelo DNIT para prefeituras “transformarem” em estradas e ruas. – Milhares de Estações e instalações como oficinas, pátios e depósitos da antiga RFFSA pelo Brasil afora foram abandonados pelas Concessionárias e se acabaram sob o vandalismo e as invasões, tudo naturalmente sob os olhares da dupla ANTT – DNIT. – Mesma coisa para os milhares de locomotivas, vagões de carga e carros de passageiros, pelos quais as Concessionárias não se interessaram desde o início, ou então que usaram até o osso, e depois abandonaram.

 

Então, sobraram hoje:

– De linhas, apenas as que as Concessionárias querem.

– De Estações e oficinas, apenas o que serve diretamente ao negócio delas.

– E de locomotivas, vagões e carros de passageiros, uma mísera fração do que havia em

1996.

Ao longo do tempo, o DNIT, órgão que deveria, em princípio, cuidar do patrimônio não utilizado pelas Concessionárias, só fez trabalhar pela EXTERMINAÇÃO do que não serve diretamente às Concessionárias, como se elas fossem as únicas instâncias neste país a terem o direito de se beneficiar do transporte ferroviário.

Para o minério e a soja, a segurança e os baixos custos do transporte ferroviário. Para a população e suas cargas, as rodovias.

Neste quadro que vem sendo escancaradamente pintado há décadas, não há dúvida alguma: o Brasil não é JAMAIS para ter de volta o transporte ferroviário disseminado, amplo e universalizado. O transporte ferroviário aqui deve se restringir ao que as Concessionárias exportadoras desejam.                                                                                            

A ANTT e o DNIT, sob os sucessivos comandantes que se alternam no Ministério dos Transportes, não têm mais nem mesmo o cuidado de um discurso protocolar que inclua ao menos a gentileza de citar a população como “possível” beneficiária das ferrovias.

Doc vaz - 4.pngIsto tem ficado cada vez mais claro, e a Resolução 4.131 produzida pela ANTT, e jamais questionada pelo DNIT, foi a prova definitiva, se é que faltava alguma. Portanto, o DESMANCHE do que não serve às Concessionárias é um movimento permanente, tem de continuar, e de preferência, acabar logo!

Enquanto houverem por ai locomotivas, vagões, e carros de passageiros, danificados que sejam, em estado lastimável que seja, mas ainda por aí, haverá sempre o perigo de incômodas iniciativas lunáticas que ousarão tentar reativá-los para uso outro que não o das Concessionárias.

Afinal, e além disso, tanto material rodante em péssimo estado de conservação, espalhado por aí, escancara para todos a brutal incompetência da turma ANTT, DNIT, SPU, IPHAN, que por lei deveriam ser os guardadores do que restou, mas que acaba expondo-os a frequentes questionamentos. Na realidade, cada um destes órgãos vem a seu jeito, tratando de se livrar da batata quente que está sob sua responsabilidade. Mas, vamos nos limitar aqui, ao caso do DNIT.

doc Vaz 5.pngPortanto, o objetivo é trabalhar no aproveitamento de todas as oportunidades que se apresentam para EXTERMINAR com o que ainda resta, um pedacinho ou um pedação de cada vez.

O MODUS OPERANDIS

O DNIT conta com dois grandes aliados na sua missão de se livrar do material pelo qual deveria zelar: – o tempo e – os vândalos. Um terceiro e grande aliado também não pode ser subestimado: – as Concessionárias.

A ação do tempo e das intempéries em depósitos ao relento, de qualquer jeito, e em qualquer lugar dispensa explicações.

Explicações também são dispensadas sobre a ação do vandalismo, que nunca encontrou a menor dificuldade em seu trabalho permanente de Norte a Sul.

Já as Concessionárias tem ajudado o trabalho do DNIT de formas que nem sempre são bem entendidas por todos.

Primeiro elas ajudaram a amontoar o material rodante pelo qual não se interessaram, em locais totalmente vulneráveis, propositadamente ao alcance fácil do vandalismo. Isto foi especialmente verdade e proposital com o material rodante destinado a passageiros, já que a ideia era eliminar toda e qualquer possibilidade nesta área.

Segundo. Mesmo que houvessem iniciativas de ressurgimento de operações paralelas, mesmo naquelas que invocassem as janelas existentes nos Contratos de Concessão, todas as dificuldades eram colocadas para os que ousassem qualquer coisa. Tudo era naturalmente muito bem escorado em interpretações mais que favoráveis da ANTT e DNIT. Isto foi fundamental para que carro ou vagão algum conseguisse circular. Terceiro. Todo o cuidado para que locomotivas utilizáveis não dessem sopa por ai. Claro, nenhuma operação ferroviária paralela pode ser implantada sem locomotivas funcionando, e portanto, quando alguma é dispensada em algum pátio, sempre foi certificado de que se tratava em geral apenas da carcaça. Um processo sistemático de canibalização foi instituído por todas as Concessionárias como método de manutenção, de forma que, ao final, para cada locomotiva funcionando diversas tinham sido depredadas completamente. O DNIT nunca se incomodou com este procedimento. Aliás, muito ao contrário, ele sempre foi um forte aliado em seu afã de reduzir brutalmente o plantel pelo qual deveria responder.

Quarto. Os leilões. Diversos foram os leilões promovidos pelo DNIT para se livrar de “sucata”.

O material é abandonado, vandalizado e canibalizado e, quando aos olhos destreinados de todo mundo eles já podem ser confundidos com sucata, promovem-se leilões de limpeza de pátios. Claro, nestes leilões de sucata havia de tudo. Máquinas que de fato haviam sido reduzidas a sucata, mas, igualmente material perfeitamente aproveitável colocado junto, o que, para olhos pouco treinados, igualava tudo ao mesmo nível. O que ia e o que não ia ser vendido em cada leilão nunca foi definido tendo em vista o interesse nacional em vender melhor, ou vender só o inaproveitável, ou preservar o que deveria ser preservado. Em geral as Concessionárias, e/ou funcionários espertos das Concessionárias, mancomunados com sucateiros de perto e de longe eram quem definiam o que transformariam em dinheiro para eles a cada vez. A cada leilão o plantel se reduzia em média de centena de veículos.

E por fim, sempre no afã de se livrar do material pelo qual deveriam responder, a ANTT e o DNIT instituíram um esperto processo chamado de “permuta”, que encontrou enorme simpatia entre as Concessionárias, e que se revelou um sucesso na empreitada. Pelos Contratos de Concessão as Concessionárias pagam um aluguel simbólico pelas locomotivas que receberam em 1996, e utilizaram este tempo todo. Claro que estas máquinas não são a última palavra em locomotivas, e para diversas das operações das Concessionárias elas tiveram de comprar máquinas mais modernas e potentes. Assim, instituiu-se a permuta. Quanto vale uma máquina nova? Quanto valem máquinas antigas, utilizadas até o osso, sem manutenção adequada, depreciadas pelas décadas de serviço nas Concessionárias, ou totalmente canibalizadas? O encontro de contas entre uma máquina nova e as antigas, acertado a quatro paredes entre o DNIT e a Concessionária, e em cima da “avaliações” feitas pelas próprias Concessionárias e nunca checadas pelo DNIT, é de dar dó. Nele, uma máquina nova vale dezenas de velhas. E então, o processo se completa com o DNIT ficando “dono” da nova, e a Concessionária “dona” das velhas. Só que, é claro, a Concessionária é quem usa o material “novo” do DNIT, mas, com a diferença de que, agora, a Concessionária, como “dona”, está livre para desmanchar ou fazer o dinheiro que quiser com as máquinas velhas. Este é o principal processo pelo qual se garante que, mesmo máquinas utilizáveis que saiam de serviço, nunca cheguem às mãos de outros para operações paralelas.

Por este processo é que se eternizam as atuais Concessionárias como as únicas capazes de operar qualquer coisa. Diversificação alguma nas operações, ou mesmo aproveitamento algum das inúmeras linhas desdenhadas pelas Concessionárias podem ser implantados, pois, por conta deste processo, nunca há locomotivas disponíveis à cessão para outrem pelo DNIT.

Claro que as “novas” serão objeto do mesmo empenho, cuidado e carinho na manutenção dispensado às “velhas”, pois afinal das contas, a “nova” é da viúva, e será mantida apenas o suficiente para seguir rodando até o final do Contrato.

Continua no próximo domingo…

Fonte: OGNtrem

Edição gráfica: Luis Fernando Salles – Estagiário