Comentários de Fernando Abelha
Este blog, voltado à defesa das ferrovias e dos ferroviários, tem inserido, continuadamente, matérias referentes ao descalabro que se encontram as nossas ferrovias, após as concessões à iniciativa privada. Relatório da Procuradoria Geral da República, 3ª Câmara de Coordenação e Revisão, enviado ao Tribunal de Contas da União – TCU, em junho de 2011, obtido através da internet, relata, sobremaneira, as condições técnicas, operacionais, comerciais, preservacionistas e econômicas da América Latina Logística S/A – ALL, hoje denominada Rumo Logística. A partir deste domingo e nos demais, iremos publicá – lo parceladamente.
Segue a décima quarta parte:

Procuradoria Geral da República
3ª Câmara de Coordenação e Revisão
Consumidor e Ordem Econômica
Em defesa do Estado de Direito econômico
- Conclusões:
A desativação e o abandono de significativo percentual dos trechos ferroviários pelas concessionárias são resultado de opções exclusivamente econômicas de maximização dos investimentos pela iniciativa privada nos grandes corredores de exportação de minérios e commodities agrícolas. O monopólio, outrora estatal, ganha contornos de monopólio privado, transformando as ferrovias brasileiras em verdadeiros “departamentos de transporte de clientes cativos”, normalmente acionistas e investidores das próprias concessionárias.
É fato que o modal ferroviário tem vocação natural para o transporte de mercadorias de baixo valor agregado e para longas distâncias. Quanto mais presentes tais características, maior o percentual de redução de custos e, consequentemente, maiores os lucros dos transportadores e dos próprios usuários do serviço.
Sucede que as regras do mercado não podem definir livremente os caminhos dos transporte ferroviário brasileiro. A regulação da exploração do serviço público de transporte ferroviário de cargas consiste justamente em impedir que os agentes econômicos deliberem e definam sponte propria o futuro do modal em tela, devendo a Agência Reguladora, de maneira restritiva da liberdade privada das concessionárias, induzir, determinar, controlar e direcionar o comportamento destas, evitando a sobreposição dos interesses privados em detrimento dos interesses sociais e públicos definidos na Constituição Federal, na Lei de Concessões e ratificados nos contratos de concessão e arrendamento firmados.
Assim, se é verdade que o Ministério Público Federal, Tribunal de Contas da União e Poder Judiciário não podem interferir nas opções político administrativas implementadas pela ANTT no desempenho de suas atividades-fins, por outro lado é dever destas Instituições coibir ações e omissões do ente regulador que desbordam do interesse público e permitem a sobreposição do interesse privado às características do serviço público, que deve ser adequado ao pleno atendimento aos usuários, contínuo, regular, geral e com tarifas módicas.
O aumento da produtividade do transporte ferroviário de cargas (em números absolutos) contrasta com o abandono e desativação de extensos trechos concedidos, alijando usuários de várias regiões do país do transporte ferroviário, que se limita, cada vez mais, a poucos consumidores.
Este panorama contraria visivelmente a Constituição Federal, a Lei de Concessões e o próprio contrato de concessão, o que justifica a atuação ministerial e a subsequente provocação desta Corte de Contas.
Como se isso não bastasse, esse estado de permissividade com os concessionários tem tido consequências drásticas na gestão de recursos e do patrimônio públicos.
A interrupção da oferta do serviço público de transporte ferroviário de cargas em trechos supostamente antieconômicos tem ocorrido, na prática, sem qualquer autorização ou mesmo conhecimento da ANTT, violando a legislação de regência.
Depois, a interrupção mencionada desencadeia processos de invasão de faixas de domínio, depredação e furto dos bens públicos (imóveis e móveis operacionais) arrendados às concessionárias, situações inaceitáveis e de domínio público que praticamente não são enfrentadas ou combatidas pelo Poder Concedente, que se tem omitido de fiscalizar e autuar as empresas exploradoras do serviço público.
Ora, os contratos firmados (concessão e arrendamento) estabeleceram várias obrigações à iniciativa privada, que vão desde (a) metas de desempenho (produtividade e redução e de acidentes) a (b) manutenção das vias em condições de uso e zelo dos bens arrendados (manutenção, conservação e reposição).
Na medida em que a concessionária abstém-se de manter as estruturas e superestruturas de trechos ferroviários em condições de uso, bem como permite, como resultado de seu abandono/ausência, a depredação e lesão ao patrimônio público arrendado, desonera-se significativamente de obrigações contratuais assumidas em prejuízo do serviço público concedido e do patrimônio público arrendado.
O que ocorre, na prática, é a resolução parcial dos contratos de concessão e arrendamento, pois concedente e concessionário, mediante tratativas não escritas, restringem e reduzem a oferta do serviço público e restringem e limitam a obrigação de manter e conservar bens públicos arrendados aos trechos ferroviários economicamente viáveis.
Em outras palavras, se o Poder Concedente autoriza (como tem autorizado, ainda que informalmente mediante ausência de fiscalização e autuação efetivas) a utilização apenas parcial da malha ferroviária concedida, desonera o concessionário dos investimentos mínimos necessários à conservação e oferta do serviço público ferroviário naqueles trechos, restringindo um serviço público de estratégico interesse nacional e em desacordo com a Constituição Federal e legislações de regência.
Não se esqueça de que a Resolução nº 044/2002 da ANTT disciplina o procedimento relativo às solicitações de suspensão e supressão de serviços de transporte ferroviário e de desativação de trechos mediante cumprimento de requisitos e condicionantes. Todavia, quando cumpridas as aludidas condições, ou seja, se o trecho estiver efetivamente em condições de uso e seus bens conservados e restaurados, deverá a ANTT averiguar as implicações econômico-financeiras da alteração contratual e restabelecer o equilíbrio deste.
Aliás, neste particular, essa Corte de Contas já enfrentou situações semelhantes em contratos de concessão de exploração de serviço rodoviário em que fatos supervenientes exigem (ou estão a exigir) a ação do regulador a fim de reequilibrar o contrato em favor do usuário/consumidor (TC-026.335/2007-4).
Em outras palavras, não é possível que a concessionária desonere-se de obrigações contratuais assumidas, todas em detrimento do desenvolvimento regional e dos princípios da universalidade e acessibilidade do serviço público e em detrimento do patrimônio público sem a correspondente assunção de novas responsabilidades.
Especificamente com relação aos bens depredados e invadidos, a tomada de medidas administrativas destinadas ao estancamento dessa omissão é urgente, não só para salvaguardar o serviço de transporte ferroviário em si, mas também para preservar o patrimônio público (inclusive histórico e cultural) que se deteriora dia após dia.
- Requerimentos:
Por tudo isso, o Ministério Público Federal representa a esta Corte de Contas para adotar as medidas cabíveis, e desde já sugere que:
11.1. Contrato de Arrendamento firmado entre RFFSA e América Latina Logística S.A. (Malha Sul):
a) análise do quantitativo de bens móveis e imóveis arrendados devolvidos pela ALL e efetivamente recebidos pela extinta RFFSA (inventariança) e/ou pelo DNIT, averiguando se os agentes públicos avaliaram a depreciação de cada item, invasões, destruições, apontando valores e avalizando a devolução;
a1) particularmente sobre isso, elaboração de planilha de vagões e locomotivas arrendados, cotejado com os atualmente em operação e efetivamente incorporados ao patrimônio público, separado desse quadro oficial aqueles comprados ou arrendados por clientes e disponibilizados às operadoras para circulação em determinado trecho, os arrendados pelas concessionárias e todos os demais que não são públicos;
b) especificamente em relação às invasões de casas, terrenos e faixas de domínio, análise dos motivos da invasão, ou seja, se essas decorreram da
omissão/negligência/abandono da arrendatária, bem como se os agentes públicos receberam os aludidos imóveis eventualmente invadidos e/ou estabeleceram algum tipo de exigência/compensação/condicionante;
c) apuração dos valores arbitrados/apurados decorrentes da depreciação dos bens devolvidos, bem como se houve o efetivo pagamento pela concessionária;
d) investigação da possível economia obtida pela concessionária com a desoneração dos deveres de guarda, manutenção, conservação e restauração dos bens arrendados e posteriormente devolvidos ao Estado, a qual consequentemente enseje revisão do equilíbrio do contrato em favor do Estado ou indenização a este título;
11.2. Contrato de Concessão firmado entre a RFFSA e a América Latina Logística S.A., especificamente em relação à Malha Sul:
a) fiscalização do cumprimento do contrato de concessão, notadamente no que tange ao abandono, não utilização e desoneração da concessionária de oferecer o serviço público concedido em vários trechos da malha ferroviária, ainda que sem autorização para tanto;
b) estimativa do prejuízo causado ao patrimônio público e à sociedade (de engenharia, de infraestrutura, histórico-cultural, etc), levando em conta, também, o impacto econômico causado em cada região abandonada (pelo sufoco ao desenvolvimento), o acréscimo do custo para recuperação das rodovias (pelo excesso de caminhões/peso), a perda de vidas em acidentes nas vias de asfalto, o incremento no custeio do sistema de saúde decorrente da recuperação dos feridos em acidentes rodoviários, entres outros vetores.
11.3. Em relação à América Latina Logística S.A.
a) exame global de todos os contratos de concessão e arrendamento envolvendo o transporte ferroviário e o grupo ALL, com a quantificação do percentual e valor das partes abandonadas e, de outro lado, análise das garantias fornecidas pela empresa quanto à compatibilidade/adequação com as espécies contratuais.
b) análise dos financiamentos públicos concedidos à empresa, com especial atenção aos provenientes do BNDES, verificando valores, legalidade, garantias concedidas e cumprimento deles12;
c) exame da evolução e da atual composição acionária da ALL, verificando se aqueles que assumiram os compromissos no momento da licitação e feitura dos contratos, não foram gradativamente se desvestindo da responsabilidade, ou ainda outra situação que possa configurar ilegalidade.
d) análise das repercussões no equilíbrio econômico-financeiro de todos os contratos de concessão decorrentes da suspensão (formal ou informal) da oferta do serviço público de transporte ferroviário de cargas em significativos trechos ferroviários
11.4. Agência Nacional de Transporte Terrestres – ANTT:
a) apuração da ausência de fiscalização e sobretudo de autuação/aplicação de penalidades pela ANTT às concessionárias, inclusive no que tange às determinações administrativas que contrariavam as próprias resoluções da Agência, tudo consoante o item 7 da presente representação;
b) análise das providências tomadas pela ANTT no que tange aos trechos ferroviários abandonados assim reconhecidos na ação cominatória em trâmite na Justiça Federal do Rio de Janeiro, cuja liminar, em vigor, vem sendo deliberadamente descumprida pela concessionária;
c) apuração do valor atual da multa diária na ação judicial (especificar) e as razões pelas quais a União não tem efetivado a cobrança desses valores.
11.5. União (Ministério dos Transportes)
a) exame sobre a conveniência de abreviar a revisão do marco regulatório do transporte ferroviário, de modo que se encontrem soluções mais eficientes para o setor e/ou, em relação aos casos específicos, se colham dados técnicos que sustentem uma possível caducidade dos contratos de concessão.
O Ministério Público Federal tem ciência da tarefa gigantesca que os requerimentos acima representam. Por isso, coloca-se à disposição, por meio dos membros envolvidos, para auxiliar, a critério da Corte, na participação do plano de trabalho. Esclarece que os requerimentos se voltam, neste primeiro momento, para os contratos da concessionária que possui a maioria da malha brasileira (ALL) e que apresenta sérios problemas. Em uma segunda etapa, os contratos das demais concessionárias também deverão ser objetos de exame. Sugere-se, afinal, consulta ao Ministério da Defesa sobre a possibilidade de contribuir com o trabalho de georreferenciamento dos bens abandonados.
FIM
